O veterinário M., de 35 anos, acaba de se mudar pela segunda vez na
vida. Arrumou as roupas no armário, terminou de embalar os móveis novos,
para serem vendidos, e montou a cama de casal em seu antigo quarto, na
casa dos pais, na zona sul de São Paulo. Foi para lá que ele voltou após
perder o emprego e ter o apartamento leiloado pelo banco, em agosto.
“Da outra vez, choramos de saudade. Agora, de decepção.”
A busca pela moradia própria se transformou em pesadelo para milhares
de brasileiros neste ano. Até o início de dezembro, a Caixa colocou à
venda – por meio de leilões, concorrências públicas ou venda direta –
8.626 imóveis retomados por falta de pagamento do financiamento, 16% a
mais que no ano passado.
O aumento no número de unidades ofertadas pelo banco, que detém quase
70% de todo o financiamento imobiliário do País e 4,35 milhões de
contratos ativos, não é por acaso. Desde 2012, o total de imóveis
retomados por inadimplência pela Caixa cresce. Os dados mais recentes
mostram que, entre 2014 e o ano passado, a recuperação de propriedades
aumentou 53,8%.
É uma reação em cadeia, explica Miguel Ribeiro de Oliveira,
vice-presidente da Anefac, que reúne executivos de finanças. Crise e
desemprego minaram o potencial de renda do brasileiro e reduziram sua
capacidade de manter as contas em dia. Sem recursos, ele começa a
atrasar as parcelas da casa por um, dois, três meses, até não poder mais
negociar com o banco.
“Grande parte dos mutuários aderiu ao financiamento imobiliário
aproveitando o momento de facilidade de crédito no período pré-crise. Só
que os contratos são longos, podem durar 35 anos, e a recessão pegou
todos de surpresa no meio do caminho. A retomada de imóveis pode crescer
mais, pois o cenário que nos levou a isso não foi dissipado.”
“Para o banco, a retomada é uma dor de cabeça. Ele tem de arcar com
custos como condomínio e IPTU e manter uma estrutura interna para lidar
com esses imóveis. O importante é entender que a compra do imóvel não é
para todo mundo. Embora dentro do limite de 30% da renda, a prestação
fica muito mais alta do que se pagava de aluguel”, diz Marcelo Prata, do
Canal do Crédito, que compara produtos financeiros.
Quando detectada a incapacidade de pagamento, o morador pode tentar
vender o imóvel, negociando com o banco a transferência da dívida, ainda
que abaixo do preço de mercado, para evitar problemas maiores.
Moradia de risco. Ainda que seja a moradia da família, o imóvel
financiado pode ser retomado e vendido pelo banco. Na maioria dos casos,
o banco notifica o mutuário após o primeiro mês sem pagamento, e o
processo de retomada do imóvel ocorre quando o atraso passa de 90 dias.
Nesse intervalo, o mutuário pode tentar diluir as parcelas em atraso
aumentando as próximas mensalidades, ou estender o tempo de
financiamento, caso o contrato não seja no prazo máximo permitido pelo
banco.
“Em muitos casos, o banco aceita negociar com o inadimplente uma vez,
mas fecha as portas de negociação caso ele fique em atraso de novo”,
afirma Tathiana Cromwell, da Associação dos Mutuários de São Paulo e
Adjacências (Amspa).
A lei diz que o mutuário pode receber a diferença entre o valor de
retomada e o preço de venda do imóvel a terceiros. Se o morador deve R$
100 mil ao banco e o bem foi leiloado por R$ 200 mil, ele quita a dívida
e recebe os R$ 100 mil restantes.
“Quem entra na espiral de negociação, negativas e possibilidade de
perder a casa vive o pior dos mundos. Tenta entrar na Justiça para rever
valores, fica na expectativa de ter a casa leiloada e, quando o banco
não tem um interessado no primeiro leilão, em que o imóvel é vendido
pelo preço avaliado, tem de fazer um segundo, e o valor só cobre a
dívida, na maioria dos casos”, lembra Tathiana.
Segundo a Caixa, o porcentual de imóveis retomados pela instituição
em 2015 equivale a 0,3% do total em carteira. Além disso, “as medidas
legais de retomada do bem, previstas em contrato, apenas são adotadas
após o esgotamento da negociação entre o banco e o cliente”.
Maiores compradores. O casal sorri, enquanto levanta a placa para dar
um lance na casa da Chácara Japonesa, zona sul de São Paulo. O
investidor pede para que sejam reabertas as ofertas para um apartamento
de dois quartos. Pela internet, compradores disputam uma unidade na zona
oeste. No último leilão de imóveis da Caixa do ano em São Paulo, a uma
semana do Natal, o público é pequeno e heterogêneo.
Profissionais estimam que o número de leilões aumentou 30% desde o
ano passado. O agravamento da crise ajudou a atrair um outro perfil de
interessados.
Há alguns anos, a maioria dos compradores de imóveis retomados pelos
bancos era formada por investidores experientes, que buscavam
oportunidades de arrematar propriedades com até 50% de desconto, para
revender no futuro.
Com o desaquecimento do mercado imobiliário, porém, esse comprador
tem cedido espaço a quem procura um imóvel para morar. Há do casal de
servidores públicos que quer sair do aluguel “e comprar uma casa maior,
para acomodar as crianças”, ao taxista que arrematou uma casa avaliada
em R$ 600 mil por R$ 366 mil, “para dar de presente de casamento à
filha”.
“O público é menor nesta época do ano, mas tem crescido. Muita gente
que iria comprar um imóvel com uma construtora ou imobiliária tem vindo
empolgada pelos descontos”, diz Fernando Cerello, da Megaleilões,
responsável pelo evento. Especialistas recomendam que o interessado
visite o entorno do imóvel e se informe sobre os preços, para fazer um
bom negócio.
Ocupado. Como a maioria das unidades ofertadas está ocupada, a Caixa
lembra que o imóvel é vendido no estado em que se encontra, muitas não
podem ser visitadas por dentro, e a responsabilidade de desocupação é do
comprador. É o caso da corretora Maria Nazaré Nunes, de 50 anos.
Ela tem planos para a casa de R$ 150 mil, em São Bernardo do Campo,
que comprou no leilão. “Não está fácil de vender agora, mas posso
conseguir até R$ 250 mil depois. Por experiência, a retirada do antigo
morador leva cerca de seis meses e, mesmo que ele não queira sair, ele
acaba saindo.”
“A Justiça não é padronizada, pode demorar 60 dias ou um ano para que
o arrematante entre no imóvel”, diz André Zalcman, da Zukerman Leilões.
(AE)